- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
A prisão da empresária e influenciadora digital Deolane Bezerra em uma operação da Polícia Civil contra uma organização criminosa suspeita de lavagem de dinheiro e prática de jogos ilegais na internet chamou a atenção para como as bets podem ser usadas para encobrir a origem de dinheiro ilegal.
Bezerra foi detida nesta quarta-feira (5/9) em Recife como parte da operação “Integration” da Polícia Civil de Pernambuco e de outros quatro Estados.
De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a quadrilha alvo movimentou cerca de R$ 3 bilhões em quatro anos. Ao todo, foram expedidos 19 mandados de prisão e outros 24, de busca e apreensão.
A polícia não detalhou a ligação de Deolane e da mãe dela, Solange Bezerra, que também foi presa, com o suposto esquema criminoso.
Sabe-se, porém, que estão entre os alvos da investigação algumas empresas envolvidas em jogos na internet. Uma delas é a plataforma de apostas online Esportes da Sorte, que também atua como patrocinadora de alguns times de futebol, como Corinthians, Athletico-PR, Bahia, Grêmio, Palmeiras, Ceará, Náutico e Santa Cruz.
Após a operação, a casa de apostas Esportes da Sorte informou que “ratifica seu compromisso com a verdade, com o jogo responsável e, principalmente, com o cumprimento de todos os seus deveres legais”.
“A nossa casa está de portas abertas para apresentar documentos, esclarecer dúvidas e prestar apoio irrestrito a qualquer ação investigatória. Atuamos sempre com muita transparência e lamentamos o fato de, no momento, estarmos às escuras, sem acesso aos autos do inquérito e aos motivos da ação policial. Seguimos à disposição para todo tipo de esclarecimento que seja necessário para elucidar qualquer controvérsia”, diz a nota.
Já a defesa da influenciadora Deolane Bezerra publicou uma nota nas redes sociais em que diz que a investigação é sigilosa e que a divulgação de detalhes específicos do processo “não só desrespeita o direito à privacidade da investigada, como também pode configurar violação de segredo de Justiça, sujeitando os responsáveis às devidas sanções legais”.
“Ressaltamos que a Dr. Deolane Bezerra tem plena confiança na Justiça e permanece à disposição para colaborar com as autoridades competentes, de modo a esclarecer todos os fatos.”
Segundo o portal JC, em seu depoimento à polícia, Deolane confirmou que recebia dinheiro da casa de apostas Esportes da Sorte por meio de contratos de publicidade. No entanto, a influenciadora negou envolvimento em crimes de lavagem de dinheiro e ocultação de bens.
Após a prisão, a empresária também escreveu uma carta, que foi publicada em suas redes sociais, em que afirma estar sofrendo “uma grande injustiça” e diz que ela e a família são vítimas de preconceito.
“Os cassinos, jogos de azar e jogos online são muito visados por criminosos desde sempre”, diz Ilana Martins Luz, sócia do escritório Martins Luz & Falcão Sande Advogados Associados e doutora em Direito Penal pela USP.
Segundo a advogada criminalista, isso acontece por se tratar de um ambiente que opera muitas vezes com baixa regulamentação, além de usar um formato em que a aleatoriedade e a sorte falam muito alto, tornando mais possível a utilização de expediente fraudulentos.
Apostas e lavagem de dinheiro
A lavagem de dinheiro é o mecanismo por meio do qual se dá aparência de lícito ao dinheiro ilícito. Na prática, acontece por meio da realização de transações para camuflar as fontes criminosas e, posteriormente, da incorporação do valor no sistema formal com aparência de licitude.
Esse processo costuma ser usado para esconder a origem de valores obtidos por meio de atividades criminosas, como tráfico de drogas, estelionato e corrupção.
Quando se utilizam das bets para realizar a lavagem de dinheiro, os criminosos basicamente buscam justificar a origem de seus ganhos ilícitos fazendo-os passar por valores ganhos a partir apostas.
“O que se faz é basicamente simular que aquele dinheiro foi ganho no jogo, quando na verdade foi ganho em outro lugar”, explica Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
E com a legalização das bets, realizada em 2018 por meio da sanção de uma medida provisória pela então presidente Michel Temer, ficou possível justificar o ganho por esse meio, diz o especialista.
Há diversas estratégias utilizadas para isso, que podem variar conforme o mecanismo do jogo e a atuação da casa.
Em alguns casos, por exemplo, os criminosos realizam depósitos de origem ilícita – muitas vezes em dinheiro em espécie ou criptomoedas – em contas em empresas de bet e sequer investem o valor em apostas, transferindo posteriormente o montante para contas bancárias.
Contas em nome de intermediários, às vezes dezenas deles, também podem ser usadas dessa forma e para esses fins.
“Chamamos essas pessoas de ‘mula’ da lavagem de dinheiro”, explica Ana Carolina Carlos de Oliveira, consultora anti-lavagem de dinheiro do BSL Group, nos EUA, e pesquisadora do tema na Universidade Pompeu Fabra. de Barcelona. “Essas transações podem passar desapercebidas pelos bancos, pois costumam ser de valores menores.”
Nessas situações, as transações entre os ‘mulas’ e o destinatário final do valor podem ser justificadas como prestação de serviços de origem lícita, por exemplo, afirma Oliveira.
Os criminosos também podem usar os depósitos feitos nas contas de bet para realizar apostas coordenadas, em que os ganhos de um apostador (que está agindo em conluio com os outros) são usados para legitimar os fundos ilícitos.
Segundo Ana Carolina Carlos de Oliveira, essas são operações que envolvem mais complexidade, mas ainda assim podem acontecer, especialmente quando há jogos de azar envolvidos.
Outro mecanismo utilizado, segundo Pierpaolo Cruz Bottini, envolve o próprio gestor da empresa de bet. “Os criminosos podem criar um mecanismo de dissimulação em que eles fingem que apostam e fingem que ganham”, diz.
Todas essas estratégias, explicam os especialistas, são muito utilizadas em cassinos em países onde essas casas de aposta são permitidas.
A regulamentação das apostas esportivas
A lei que estabeleceu os limites para as bets foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro deste ano e já está em vigor, mas as empresas têm anistia para se adequar até 1º de janeiro de 2025.
A legislação cobre os sites de apostas esportivas no Brasil, um mercado que vive um boom de crescimento no país desde 2018, quando as páginas foram liberadas para operar no país e logo passaram a patrocinar quase todos os principais times de futebol, masculinos e femininos.
A regulamentação vai permitir que o governo passe a taxar empresas e apostadores. Além disso, visa a uma maior fiscalização sobre o setor, para coibir a atuação de sites ilegais e a manipulação de resultados, assim como a estabelecer novas regras para propaganda desses sites e ações de suporte para usuários contra o vício em jogo.
No primeiro caso, o apostador é capaz de acompanhar o resultado para saber se ganhou ou perdeu, por exemplo, monitorando os eventos esportivos. Também é possível saber qual será o lucro obtido em caso de resultado favorável, por isso esse tipo de aposta é chamada de quota fixa.
Já os jogos de azar, como por exemplo o que ficou popularmente conhecido como “jogo do tigrinho”, dependem de um algoritmo que é desconhecido pelos apostadores.
Outra forma de jogo de azar bastante conhecida são as loterias. Essas são regulamentadas pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 204/1967, mas são consideradas um monopólio do Estado brasileiro.
Ilana Martins Luz afirma que, no Brasil, toda essa discussão ganhou novas proporções quando passou a envolver propagandas realizadas por influenciadores.
“No Brasil os influenciadores estão sendo muito utilizados para divulgar esse tipo de plataforma de jogos – leais e ilegais”, diz. “Alguns ilegais porque não são de quota fixa, outros porque se tratam de estelionato, ou seja, são jogos programados para que o apostar sempre perca dinheiro no final.”
Certificação dos meios de pagamento
Em uma audiência pública sobre as apostas esportivas realizada na Comissão de Esporte (CEsp) do Senado em outubro do ano passado, o advogado José Francisco Cimino Manssur, então assessor do Ministério da Fazenda, também tratou da questão.
O uso para lavagem de dinheiro é uma das “externalidades negativas” trazidas pelas apostas por quota fixa, disse o especialista, que hoje não faz mais parte do ministério.
Para tentar evitar tais operações, o Ministério da Fazenda tem investido na certificação dos meios de pagamento usados nas apostas online pelo Banco Central. Em abril deste ano, a Secretaria de Prêmios e Apostas da pasta publicou uma portaria com as regras gerais para as transações.
Entre outras coisas, a norma determina que o apostador poderá transferir recursos para a realização de apostas por meio de PIX, TED, cartões de débito ou cartões pré-pagos, desde que os recursos sejam provenientes da sua conta cadastrada na bet.
Não serão aceitos aportes financeiros por meio de dinheiro em espécie, boletos de pagamento, criptoativos ou qualquer outra forma alternativa de depósito que possa dificultar a identificação da origem dos recursos.
A portaria também determina que os recursos dos apostadores não poderão ser utilizados para cobrir despesas operacionais de responsabilidade das bets ou ser dados em garantia de dívidas dos agentes operadores, minimizando assim o risco de má gestão dos recursos financeiros.
A secretaria ainda iniciará um processo de monitoramento das empresas de apostas a partir de 1º de janeiro de 2025, quando começa a funcionar o mercado regulado de abrangência nacional. Esse trabalho incluirá, segundo o Ministério da Fazenda, inspeções por meio de um sistema de processamento de dados e também visitas in loco às empresas.
Para evitar a prática de lavagem de dinheiro na Europa, por exemplo, apostadores que desejem sacar valores acima de 2 mil euros em fichas precisam se identificar completamente, explica Ana Carolina Carlos de Oliveira.
“O processo de identificação é semelhante ao que existe quando se abre uma conta bancária”, diz a pesquisadora. “Essa regra serve para tudo no continente: cassinos, apostas onlines e até e-games.”
Mas os especialistas afirmam que, mesmo com todas essas medidas, a lavagem de dinheiro ainda pode acontecer.
“O que se faz é criar travas e mecanismos para dificultar tornar mais caros e oneroso esse processo”, afirma Pierpaolo Cruz Bottini. “Mas esse é um processo eterno, porque a criatividade humana para lavar dinheiro é infindável. As autoridades precisam estar sempre correndo atrás.”
Para Ilana Martins Luz, “mesmos os bancos brasileiros que possuem os sistemas de compliance mais sofisticados e antigos não conseguem impedir totalmente que a lavagem de dinheiro aconteça”.
“Por isso é preciso que esse mercado seja bem regulamentado”, diz.
“Só o tempo vai dizer se vamos ingressar em um modelo de segurança jurídica a nível nacional”, opina Cruz Bottini. “Mas tenho eu tenho esperanças de que isso acontecerá com o tempo.”
A operação
A operação deflagrada nesta quarta começou com uma investigação de lavagem de capitais, iniciada em abril de 2023, a partir da apreensão de R$ 180 mil reais em espécie em 1º de dezembro de 2022.
Foram movimentados, de janeiro de 2019 a maio de 2023, mais de R$ 3 bilhões em contas correntes, em aplicações financeiras e dinheiro em espécie, provenientes dos jogos ilegais.
Conforme o inquérito, a organização criminosa usava várias empresas de eventos, publicidades, casas de câmbio e seguros para lavagem de dinheiro realizada por meio de depósitos e transações bancárias.
Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o dinheiro era lavado por meio de depósitos fracionados em espécie, transações bancárias entre os investigados com o imediato saque do montante, compra de veículos de luxo, aeronaves, embarcações, joias, relógio de luxo, além da aquisição de centenas de imóveis.
Os investigadores identificaram transações atípicas de pessoas físicas e jurídicas, que indicam indícios de crimes financeiros, sem nenhum suporte para as transações comerciais e financeiras feitas pelo grupo.
Além disso, a maioria dos integrantes tem padrão de vida incompatível com a renda e bens declarados.