Friday, September 27, 2024

Cancro digestivo em Portugal: a aposta certa é na prevenção

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Qual o impacto do cancro digestivo na saúde dos Portugueses?

Quando falamos em cancro digestivo, referimo-nos maioritariamente a 5 tipos de tumores mais frequentes, já designados por “big five” pelo seu importante impacto na saúde da população: referimo-nos aos cancros do intestino, estômago, pâncreas, esófago e fígado.  Em Portugal, perfazem cerca de um terço do total de tumores diagnosticados anualmente (correspondendo a mais de 10 mil novos casos por ano) e são responsáveis por cerca de 10% do total das mortes. Quando estes tumores não são diagnosticados e tratados atempadamente, reduzem significativamente a qualidade e a esperança de vida do doente.

O cancro do intestino (designado por cancro colorretal) merece especial destaque, pois representa a principal causa de morte por cancro digestivo em Portugal, sendo responsável por cerca de 4.000 mortes por ano a nível nacional. Atualmente, o risco médio de uma pessoa desenvolver cancro colorrectal ao longo da vida é de cerca de 5%, podendo ser maior na presença de determinados fatores de risco. Um aspecto preocupante deste tipo de tumor é a sua incidência crescente na população jovem (com menos de 50 anos), embora continue a afetar principalmente as faixas etárias mais avançadas.

O cancro do estômago (cancro gástrico) também deve ser destacado, por apresentar em Portugal uma incidência duas vezes superior à média europeia, sendo o segundo cancro digestivo mais frequente a nível nacional. De toda a Europa Ocidental, somos o país com maior incidência de cancro gástrico! A elevada prevalência da infecção por Helicobacter pylori na população portuguesa (uma bactéria presente em cerca de 70% da população com mais de 50 anos) e o elevado consumo de alimentos fumados e conservados em sal contribuem para a elevada incidência nacional deste tumor. Em Portugal estima-se que até quatro em cada 100 homens e duas em cada 100 mulheres irão desenvolver cancro gástrico em algum momento da sua vida.

O tumor digestivo que apresenta globalmente pior prognóstico é o do pâncreas, cuja incidência em Portugal duplicou nos últimos 25 anos e que se estima que venha a constituir um problema crescente de saúde pública.

Como podemos prevenir ou melhorar o prognóstico do cancro digestivo?

Devemos salientar a importância da prevenção nos seus diferentes domínios. No âmbito da prevenção primária, que inclui medidas preventivas ao nível do estilo de vida, é particularmente relevante evitar o tabaco e cumprir uma dieta mediterrânica, pobre em gorduras, sal e conservas e rica em fibras, bem como praticar regularmente exercício físico. Sabemos que o tabaco e a obesidade são fatores de risco transversais a todos os tipos de cancro digestivo. Devemos ainda enfatizar que o diagnóstico precoce, quer pela realização de exames de rastreio em pessoas saudáveis, quer pela investigação precoce de sintomas, pode salvar vidas!

O cancro do intestino é o melhor exemplo do tumor digestivo que se pode prevenir: normalmente desenvolve-se muitos anos antes, em lesões pré-malignas designadas pólipos, que podem ser diagnosticados e removidos por colonoscopia. Atualmente a colonoscopia assume um papel central no âmbito da prevenção do cancro colorrectal, ao aliar a sua rentabilidade diagnóstica ao seu potencial terapêutico. Na verdade, o cancro colorrectal é frequentemente assintomático até uma fase avançada da doença e já foi inequivocamente demonstrado que o rastreio por colonoscopia (ao permitir a remoção de pólipos) diminui significativamente o risco de morte por este tumor. Atualmente várias sociedades científicas aconselham o início do rastreio aos 45 anos, pela incidência crescente do cancro colorrectal nos grupos etários mais jovens.

A realidade nacional relativa ao cancro gástrico também sustenta a necessidade de implementar um programa de rastreio, idealmente por endoscopia digestiva. O objectivo será identificar lesões pré-malignas/malignas precoces (numa fase ainda assintomática) ou identificar determinadas condições que incrementam o risco oncológico, permitindo integrar o indivíduo num programa de vigilância. A maioria dos tumores do estômago surge a partir de uma condição designada gastrite atrófica, particularmente prevalente na população portuguesa com mais de 50 anos e muitas vezes assintomática. Foi já demonstrado num estudo nacional que o rastreio por endoscopia digestiva alta, realizada no mesmo momento da colonoscopia de rastreio (em indivíduos com mais de 50 anos), é custo-eficaz na prevenção do cancro gástrico.

O mediatismo associado ao aumento de incidência e ao mau prognóstico do cancro do pâncreas, que geralmente manifesta-se numa fase avançada da doença, tem estimulado a procura de métodos de rastreio eficazes generalizáveis à população. Atualmente ainda não existe um exame de fácil execução, rapidamente disponível, isento de complicações e com elevada acuidade, que possibilite a generalização do rastreio do cancro do pâncreas. O rastreio de subgrupos específicos com elevado risco de cancro do pâncreas já é realizado em vários centros europeus, mas apenas no âmbito de programas de investigação. Nestes casos a estratégia de rastreio geralmente inclui a ressonância magnética e a ecoendoscopia, que são os 2 exames com maior acuidade para o diagnóstico deste tumor. Um importante campo de investigação nesta área é a validação de determinados marcadores tumorais (biomarcadores), pesquisados por análise sanguínea, que possam vir a permitir um diagnóstico verdadeiramente precoce, mesmo antes da massa tumoral ser visível em exames de imagem. Esperamos que estes biomarcadores possam vir a ser úteis no rastreio em massa do cancro do pâncreas e também na monitorização da resposta ao tratamento.

E por fim, falando sobre tratamento do cancro digestivo, o que podemos esperar para o futuro?

Devemos salientar que têm sido alcançados importantes progressos no tratamento dos vários tumores digestivos, abrangendo as diferentes fases (estádios) da doença. O espectro de lesões pré-malignas e malignas do tubo digestivo passíveis de tratamento endoscópico, minimamente invasivo, tem sido ampliado, com claras vantagens para o doente e em termos económicos. Temos também assistido a importantes progressos nas técnicas cirúrgicas, cada vez menos invasivas, incluindo novas técnicas de cirurgia laparoscópica e robótica. Também o tratamento médico tem tido importantes avanços, salientando-se o reconhecimento de novos alvos para quimioterapia e imunoterapia. Já atingimos a era da Medicina personalizada, em que procuramos caracterizar o perfil individual (incluindo determinadas características moleculares) de cada tipo de tumor, de forma a administrar um esquema terapêutico específico/personalizado, que aumente a eficácia global do tratamento. Mas a prevenção deverá ser o foco de atenção nas políticas da Saúde, pois apenas assim poderemos mudar radicalmente a história natural destas doenças.

Um artigo do médico Miguel Bispo, Gastrenterologista na Fundação Champalimaud, Lisboa, em representação da Comissão Editorial da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG).

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